quarta-feira, 18 de março de 2009

Prole- Primeira parte

Em uma tremenda necessidade de dar continuidade aos conto de “Em Busca de Conhecimento”, decidi por reescrever o segundo conto, Prole. Para não faltar com a verdade com os nosso veteranos da Segunda Guerra Mundial, preferi seguir em frente e mudar um pouco a linha de raciocínio deste conto.

Miguel e Joshua ainda vão em busca de suas heranças no passado, mas desta vez eles não vão para a guerra. Permanecem no Brasil, encontram o avô e as coisas tomam um rumo diferente. Leiam, apreciem e opinem, agradando ou não:

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Discesa

Passaram-se dois meses desde a viagem de Joshua e Miguel ao universo de Aiarp. Apesar de Joshua raramente confessar (somente sobre pressão feita pelo primo), Miguel sabia o quanto ele sentia falta de Alicsirp e o que mais o aborrecia era a falta de sociabilização do primo:

- Pô, ficar de casa pra universidade e vice-versa num dá certo, Joshua. Cê tem de experimentar alguma coisa nova, não adianta ficar se lamentando.

- Eu não estou me lamentando! Estou fazendo o que eu sempre fiz, estudando, estagiando e indo pra casa, o que há de anormal nisso? Minha vida não precisa mudar só porque viajei para outro mundo. – Argumentou Joshua.

- Você sabe do que eu to falando. Você sente falta dela, já admitiu várias vezes... Tá, eu fiz uma pressãozinha, - contrapôs ao olhar reprovador por trás dos óculos. – mas já confessou. O teu chefe e professor – enfatizou. – já disse que o viu, várias vezes, em frente do Interportal desligado...

- É, pois é, sinto falta dela mesmo, - declarou, observando Miguel erguer os braços, como se louvasse o céu. – mas não vou me deixar ser tragado pelo Interportal para poder parar em outro lugar. Lembra o que Fred falou? Desde que havíamos sumido ele deixou a máquina ativa, mesmo quando as luzes eram apagadas do laboratório, pois se fosse desligado, seria impossível ele nos encontrar. Foram várias tentativas de que encontrássemos a corda, ele colocava de manhã e tirava quando sentia o corpo cansado. Foram três meses nesse processo. Se ele tivesse nos deixado, provavelmente eu hoje estaria morto...

- Até parece que eu ia deixar isso acontecer, aqueles anões nunca encostariam em você... Mas tudo bem, você não quer entrosar, mas isso não quer dizer que eu desisti de tentar. – E temporariamente, encerraram o debate.

Joshua contara a Miguel sobre a conclusão que chegara sobre Ocirederf e o professor Fred, dias depois de seu retorno:

- E aí, conseguiu falar com o eremita da ciência? – indagou o primo, como fazia há três meses, após a volta deles. O apelido surgira porque Fred contou que havia passado os dois meses e meio dentro do laboratório, sem contato com o mundo de fora, a espera do retorno deles, o mais interessante é que ele gostara tanto daquilo que decidiu que o único contato que teria daquele dia em diante seria com Joshua e, de sobra, Miguel: - “Cê é um verdadeiro eremita da ciência!”, enunciou Miguel, após a revelação, então era assim que ele agora se dirigia a Fred:

- Não consigo, por mais que eu tente. – relatou Joshua ao primo. – Quando começo a falar o que aconteceu, ele diz: - “Atenha-se aos fatos relevantes, como a cultura e os costumes. Sua história foi um acontecimento infortúnio, do qual certas partes não precisam ser relembradas.”, daí não falo mais nada. Ele sempre se esquiva.

- Carai, que cara complicado. Deixa eu contar pr’ele?!

- Não. – restringiu-o. – Você seria abrupto e indelicado... Exatamente, te conheço não é de hoje. Você seria capaz de chegar a ele e simplesmente falar: - “Professor, você morreu!”, sem dar chance dele se preparar, ou mais, colocando ele numa posição desconfortável. Nesse caso, é preferível a ignorância a uma verdade da qual eu nem tenho certeza que é real. – respondeu aos gestos de ingenuidade e surpresa simulada de Miguel.

Os dias seguintes seguiram cotidianamente, até que Fred surge de sua sala, no final de uma tarde:

- Vou precisar de ambos! – Ele intimou, deixando-os perplexos.

- De mim também? – inquiriu Miguel, surpreso.

- Lógico Miguel, como os dois foram bem sucedidos na viagem pelo Interportal, e as narrativas de Joshua foram enriquecedoras, gostaria que os dois fizessem uma nova. Andei experimentando viagens controladas, em simulações no computador. Elas foram excelentes. Acredito que poderei encaminhá-los para um período mais distinto, ou mesmo uma dimensão. Então, estão dispostos?

- E nossa família, professor? – indagou Joshua.

- Bem, diremos a eles que vocês farão uma viagem, com minha autorização e que provavelmente estarão sem comunicação. Não é uma mentira, mas uma omissão da verdade...

- Ta massa então, - estorvou Miguel. – bem vamos escolher...

- Nossas origens! Quando nosso avô veio para cá! – Disse Joshua, antes que Miguel finalizasse o que tinha a dizer.

- Bem, eu pensei que gostaria de voltar àquele universo, Joshua? – exprimiu surpresa, Fred.

- Eu também! – Vociferou Miguel. – Qualé o lance Joshua?

- Por mais que sejamos enviados a Aiarp, não temos certeza de onde pararemos. Apesar de eu ter feito aquela tabela dos ciclos de Aul, não temos certeza em que período, numa contagem de tempo, eles vivam.

- Tem razão Joshua. – asseverou Fred. – Eu poderia mandá-los muito a frente ou simplesmente ao princípio, completamente estranho a nós! Mantendo-os neste plano universal, tenho certo controle sobre o período do tempo. Quanto ao espaço, ele precisa...

- Ta, tá, nós sabemos, - atalhou Miguel. – ele precisa dar-nos sustentabilidade e condições de sobrevivência, Joshua já me fez este discurso antes, quando você nos deixou aqui sozinhos, propositalmente...

- Pode até ter sido proposital, pois eu ansiava por sua curiosidade Miguel, mas eu não podia presumir que vocês parassem em um universo paralelo e que demorassem tanto para o retorno. Agora terei certo controle para enviá-los a um período mais correto. – Legitimou Fred. – E manterei o Interportal aberto, como antes.

- E quando vamos? – interpelou Miguel.

- Amanhã. – assegurou o professor. – Assim terão tempo de conversar com seus familiares. Digam que é uma viagem de conhecimento.

- Este argumento eu gostei! – proferiu Miguel.

- Mas será que titia vai entender o motivo de você ir comigo Miguel? – inquiriu Joshua.

- Ah, mamãe sempre entende que eu te protejo Joshua. – Pontuou. – Então duvido que tenha algum problema eu ir contigo.

- Só não entendi uma coisa. – contestou Joshua. – Por que essa ansiedade por outra jornada? E será que não vamos interromper o fluxo temporal, indo ao passado?

- Não há como interferir Joshua. Essa é uma teoria criada pelo cinema. Se você está no passado, era necessário que você estivesse lá para a seqüência correta do fluxo temporal acontecesse, ou você acha que o Professor Emmett Brown não se lembrava que havia conhecido Marty McFly?

- Quem? – argüiu, espantado, Miguel.

- Vai me dizer que nunca assistiu De Volta Para o Futuro?

- Assistiu sim, professor, ele está de implicância com o senhor. Mas existe a interferência de Marty, fazendo a realidade dos pais dele alterar.

- Não exatamente Joshua. Você está colocando tudo numa simples linha universal e dimensional.

- Lógico! – Concluiu Joshua. - Se pensarmos em linhas multiversais e multidimensionais, Marty McFly foi colocado em um continuum onde era necessário e retornou ao presente deste, não interferindo em nada, só fazendo acontecer o necessário.

- Exato. Todas as viagens que ele faz não são temporais, mas sim multiversais. – completou o professor.

- Blá, blá, blá... Chato, chato, chato! – grasnou Miguel. – Carai, vocês dois são chatos! Tá, eu vi o filme, mas o legal é o lance de viajar no tempo e interferir nele. Pô, agora traumatizei, nem vou mais assistir o filme, porque vou ficar pensando nesse lance de multiverso e multidimensional que vocês falaram. Vamos nessa Joshua, to até com dor de cabeça. – Miguel pegou a mochila e começou a balbuciar coisas, enquanto saía. Joshua sacudiu os ombros e foi atrás do primo, correndo.

No outro dia, a ansiedade era a expressiva nos dois. Durante um intervalo mais longo, Miguel foi ao prédio onde o primo estudava e o tirou de sala:

- Miguel, esta aula de Física Quântica é muito importante para mim!

- Ah, cê é gênio, tira de letra! – gracejou. – O que você acha que vamos encontrar?

- Não sei, mas pelo menos torço para que conheçamos o vovô. Trouxe um óculos antigo dele. O grau é mais forte que o meu e a armação é bem pesada. Pelo menos não vou chegar com um aro fora do padrão da época. O que você trouxe?

- Ah, mamãe guarda umas roupas velhas do vovô, então eu trouxe um terno. Ela disse que ele chegou aqui o vestindo.

- Eu também trouxe um. Mamãe disse que pertenceu ao nosso tio-avô Giácomo. Eu cheguei a experimentá-lo, mas ele ficou largo e grande.

- Ta aí, a gente pode trocar. Nas fotos de família, tio Giácomo sempre aparentou ser mais alto e mais forte que o vovô.

- Então está combinado, agora me deixa voltar para a aula. Nos vemos no laboratório. – E saiu na direção da sua sala de aula. Vendo o primo retornar, Miguel também se retirou, remoendo as idéias.

No final da última aula, Miguel disparou na direção do laboratório, onde Joshua já se encontrava, auxiliando o professor Fred com os preparativos. Ele transformara suas duas últimas aulas em crédito, com seu trabalho no centro laboratorial, graças ao prestígio de Fred naquele centro. Quando chegou a sala do professor, o primo o esperava na porta:

- Cadê o terno? – perguntou Joshua.

- Tá dentro da mochila, mas vamos lá dentro, pois não quero pagar micão com essa velharia. – Então entraram e Fred saiu do seu escritório, que ele transformara em campo de provas:

- Troquem suas roupas e depois vamos ao Interportal. – Os dois trocaram de mochilas, quando Joshua ia se dirigindo à porta que dava para o corredor, Miguel interveio:

- Não tem banheiro aqui, não?

- Desde quando alguma sala daqui tem banheiro Miguel? – argumentou Joshua, abrindo a porta.

- Cê tá de sacanagem! Eu não vou desfilar por aí com roupa do meu avô!

- Sua roupa é do nosso tio-avô!

- Piorou. – Crocitou. – Tenho certeza que é mais feia que a do vovô! Ele era mais velho...

- Como era mais velho, ô anta... – disse Joshua, aborrecido. – Os dois eram gêmeos, só que tio Giácomo era mais alto.

- Já te falei pra parar de me chamar assim. – encolerizou Miguel. – Vovó sempre dizia que tio Giácomo nascera duas horas antes do vovô, isso o coloca mais velho.

- Nossa, que grande diferença! – Desdenhou Joshua. – Mas eles, sendo gêmeos, tornam suas roupas parecidas ou da mesma época.

- É, mas... – antes que Miguel pudesse continuar, Fred o interrompe:

- Parem com essa discussão sem sentido! Miguel, tem uma sala de mantimentos ali, pode usá-la, e Joshua acho melhor você usar meu escritório, pois não quero que venham a me questionar o motivo de você estar usando certas roupas. – Então cada um seguiu seu caminho. Quando saíram, Miguel e Joshua trajavam ternos de cor parda, de ombros largos e camisas meio amareladas, devido aos anos que estavam guardadas, os sapatos de amarro eram de bico fino e com couro desgastado:

- Carai, to sentindo que este sapato vai arrebentar a qualquer minuto... – profetizou Miguel.

- Consegui algum dinheiro da época, na coleção de papai. Se eu conseguir trocar, ele vai ter outras, da mesma época.

- Num entendo essa mania de titio de colecionar dinheiro. Pô, ele tem até dinheiro atual, como aquela nota de plástico. Dá pra gastá-la ainda!

- É melhor ser um notafílico, do que bolafílico. – Discorreu Joshua, sobre a mania de Miguel de colecionar bolas vazias, desde pequeno.

- Vamos. – Disse Fred, antes que uma nova discussão se iniciasse. Indo pro computador, perguntou. – Em que ano seus avôs vieram para o país?

- Bem, não foram nossos avôs! – Acertou Joshua. – Foi só nosso avô, vovó havia nascido aqui, era ítalo-brasileira, morava ao norte do estado. Vovô e nosso tio-avô Giácomo, vieram ao país, fugidos da Segunda Guerra Mundial. Isso foi em 1942, quando começou a campanha contra o Eixo.

- Que doidêra isso, meu! – Esbravejou Miguel. – Vovô veio fugido da guerra. Se bem me lembro da história, tio Giácomo sabia falar muito pouco o português, que aprendera com uma namorada, mas mesmo assim se sentiram deslocados. Graças a uma pessoa que os ajudou, eles chegaram à cidade de vovó.

- Vocês falam italiano? – perguntou Fred.

- Miguel sabe. – Respondeu Joshua, acanhado. – Ele e nosso primo Abel aprenderam desde pequeno.

- É, nonno ensinava a nós dois. A Abel por ser o primo nipote, e a mim por que eu era um piano, um chato, como ele mesmo dizia.

- Exemplificando, Abel era o neto mais velho e Miguel era um pentelho chato. – Replicou Joshua, um pouco chateado.

- Certo, então vamos lá. Colocarei vocês nesse período.

- Legal. – Indagou Miguel.

Depois de digitar algumas coisas, Fred disse:

- Vamos ao escritório, e peço que se posicionem em frente ao Interportal para partirem. Nada de relógios ou aparelhos móveis, sabem que não funcionará no lugar que estão indo. – Foram para a sala do professor Fred, enquanto ele se posicionava atrás do diminuto aparelho de transporte, os dois ficavam de frente e, com o acionar de um botão, um brilho intenso surgiu a frente deles e seus corpos se tornaram frações de luzes, que adentraram pelo pequeno círculo do Interportal, viajando a uma velocidade incalculável.

Miguel se levantou, instantes depois, em um gramado aparado e úmido, com se tivessem enorme cuidado com ele. Sentiu uma enorme pressão na região abdominal e vomitou o sanduíche natural e o suco de acerola que consumira no intervalo entre as aulas:

- Que merda! – vociferou. – Da próxima vez não como nada.

- Seria bem pior. – Disse Joshua, levantando a cabeça, depois de vomitar. – Você vomitaria somente bílis e poderia prejudicar seu canal digestivo, sem contar que o corpo poderia ficar enfraquecido, fazendo-o necessitar de consumo de alimento, no qual poderia demorar em encontrarmos... Onde estamos?

- Aquilo é o quê? – Perguntou, apontando para um poste a distância, no breu da noite. – E por que chegamos à noite? Pensei que chegaríamos à tarde.

- Victoria Golf & Country Club! – pronunciou Joshua.

- Como é que é?

- Em 1966, o Victoria Golf & Country Club foi desapropriado para a construção da universidade, que começou em 1967. – Explicou ao primo espantado:

- Sabe, as vezes eu fico espantado de sua cabeça ser tão pequena.

- Titio que me contou isso! – contrapôs. – Se você fosse tão atencioso com nossos tios e tias como é com as amigas de nossas primas, aprenderia mais! – Miguel riu desdenhosamente, mas Joshua ignorou. – Vamos, precisamos sair daqui, antes que sejamos pegos...

- O problema, filho, é que vocês foram. – disse uma voz altiva. A pessoa carregava um lampião, para iluminar o terreno. – Quem são vocês, como entraram aqui? – Miguel e Joshua gaguejaram, sem saber o que responder. – Bem, mudos eu sei que vocês não são, pois os ouvi conversarem. Então? – Joshua se precipitou.

- Desculpe-nos, meu bom senhor, fomos pegos em um trote dos nossos colegas. Eles nos amarraram, nos amordaçaram e nos trouxeram até aqui, para que voltássemos a pé.

- Como eles lhes trouxeram?

- Através do canal que passa por ali. – E apontou. – Atravessaram a barco e entraram no manguezal, conosco dentro.

- Vocês não têm jeito... Está bem, desta vez não darei queixa, mas se eu vir-los novamente aqui, se arrependeram. Sigam-me até a sede, pedirei ao charreteiro para levá-los ao outro lado. – E seguiram o homem até o prédio que sediava o clube, de lá foram levados numa charrete pequena até o outro lado, pela ponte que passa sobre o canal. Deixados no meio do nada, Joshua e Miguel começaram a andar, sem um destino aparente:

- Certo. – Retorquiu Joshua. - Precisamos ir para o Centro, mas já deve ser tarde e os bondes só devem passar amanhã cedo, e uma caminhada até lá é muito longa. Temos de encontrar uma casa que nos aceite, pelo menos esta noite e partiremos logo cedo, tentando chamar o mínimo de atenção.

- Que lugar é este, não me lembro de nada disso?

- Nem adianta queimar neurônios tentando lembrar. Nossa cidade era bem menos desenvolvida neste período que estamos. Percebe que a ponte só é um caminho para se chegar ao clube de golfe? Não há mais nada daquele lado, nem o bairro onde moramos existe ainda, somente pequenas casas, pois os prédios só viriam a começar suas construções na década de 70. O que temos de fazer agora é procurar algum lugar, vamos lá. – E começaram a andar. – Ah, mais uma coisa, Miguel. Deixe-me falar com as pessoas.

Injuriado com a proposta, esbravejou:

- Por quê?

- Por causa do seu modo de falar. Você utiliza muitas gírias e seu estilo de falar é muito século XXI.

- Ah tá. – Ele concorda. – Neste ponto você tem razão, não conseguiria falar parecendo um afrescalhado. Posso falar em italiano...

- Nem pensar. – Alertou. – Se estivermos no período correto, recentemente um barco de passageiros foi atacado bem próximo daqui e muitos morreram. A raiva em cima dos italianos, japoneses e alemães, tomou conta do país, de forma que várias fábricas e o comércio dos descendentes deles foram atacados. Ser um descendente ou falar italiano não seria o mais interessante no momento.

- Ok então, vou falar inglês. Inglês pode, não? – Joshua abanou a cabeça. Localizaram um pequeno hotel, a beira do canal, com algumas luzes acesas e foram em sua direção. Miguel bateu violentamente na porta, com um olhar de reprovação do primo, ao abrir da porta um senhor de idade estava lá para atendê-los:

- Por que batem com tanta violência? Minha senhora e eu estamos a ouvir as notícias no rádio.

- Perdoe a imprudência do meu amigo, meu senhor, mas ele não é daqui. Somos estudantes e fomos pegos em um trote por nossos companheiros. Se fosse possível nos dar abrigo até amanhã, prometo que partiremos no primeiro horário do dia.

- Meu jovem, estamos em dias difíceis para ficarem até tão tarde na rua. Esses seus colegas não sabem que é um período de guerra que passamos? Vocês deveriam ficar em suas casas.

- Sei bem disso, mas é que chegamos a pouco na cidade e não conhecíamos este tipo de brincadeira.

- Bem, podem adentrar. Encaminhar-lhes-ei a um dos quartos daqui, onde poderão repousar até amanhã.

- Fico por deveras agradecido. – E a porta se abriu um pouco mais, para que eles pudessem entrar. O velho não tirava os olhos de Miguel:

- Seu amigo não sabe falar?

- Como eu disse, ele não é daqui, é estrangeiro, não entende nossa língua. - respondeu. – Sei que o deve estar pensando que ludibriaria um sujeito de tão tamanho e porte, mas é que ele é manipulável. – E dá um tapa na cabeça de Miguel. – Vê, ele não liga. – Dando um sorriso para o primo, que retribui com outro. Quando o senhor vira de costas para ambos, Miguel dá um safanão no primo, que quase beija o chão:

- Dá próxima vez que fizer isso, vai dormir por três dias. – cochichou, entre os dentes. Seguiram atrás do senhor, que passou por trás de um balcão e tirou uma chave:

- Aqui está. É o primeiro quarto, assim que subirem as escadas. Fiquem a vontade...

- Sinto não ter como pagar pelo quarto! – exclamou Joshua.

- Sem problemas, meu filho. Acordarei vocês assim que o dia raiar. Tenham uma boa noite e descansem. – E os dois subiram as escadas. Assim que entraram no quarto, viram duas camas:

- Assim não brigaremos para ver quem dorme no chão. – argumentou Miguel.

- Fique quieto. – ressaltou Joshua. – Já não basta ter cochichado, agora fala em alto e bom som?

- Ih, fica calmo, Joshua. É só um casal de velhos, acha que vão conseguir ouvir alguma coisa aqui em cima?

- Vamos nos deitar, temos de partir o mais rápido possível, pois quanto mais tempo permanecemos aqui, mais encrencas nos meteremos. – Dormiram rapidamente e acordaram no outro dia com batidas na porta. Quando Joshua abriu, era o dono do hotel:

- Então, prontos para o café da manhã?

- Obrigado meu bondoso senhor, vou acordar meu amigo e já encontro com o senhor lá embaixo. – O dono do pequeno hotel saiu, com um sorriso no rosto. Quando Joshua fechou a porta, foi até o primo que babava sobre o travesseiro:

- Miguel, anda. Acorda, precisamos descer para irmos.

- Mais uma hora. Hoje eu não tenho a primeira hora.

- Lógico que não, demente, pois nem no futuro nós estamos. – Miguel levantou como de um pesadelo:

- Carai, quase esqueci. Que horas são?

- Tá cedo ainda, mas acredito que eles devem sempre madrugar. – Se aproxima da janela. – Está vendo, o sol nem saiu ainda. Melhor descermos, eles estão nos esperando... Por favor, Miguel, ponha as roupas. – Falou Joshua assim que o primo levantou, nu.

Assim que Miguel se vestiu, os dois desceram e encontraram uma mesa repleta de comida, quando se sentaram, o casal saiu da cozinha, carregando um bule de café e outro de leite:

- Que bom que desceram. – Disse a senhora, parecendo animada. – o bolo está fresco, podem se servir. De onde vocês dois são?

- Eu sou desta região mesmo, o meu amigo veio de fora do país, dos Estados Unidos.

- Sei. – Disse o senhor, enigmático. – A não ser que vocês estejam fugindo de algo, não precisam manter essa mentira. Eu ouvi vocês dois conversando normalmente ontem, então não há motivos para permanecerem com essa mentira.

Joshua parecia perplexo, mas se virou enervado para Miguel:

- Eu te falei para ficar quieto.

- Ah, qualé Joshua! Menos mal que eles saibam quem somos, pelo menos não precisamos ficar nos escondendo.

- Seu modo de falar é peculiar, meu jovem. Começo a acreditar que teu amigo está certo, quando diz que és estrangeiro.

- Desculpe-o, meu bom senhor! – retrucou Joshua, enquanto se servia de uma xícara de café. – É que somos de bem longe mesmo e estamos aqui numa missão, precisamos reencontrar alguns parentes nossos.

- Fico deveras aliviado, meu jovem. Fiquei a imaginar se não seriam desertores ou algo parecido. Mas pelo bom trajar de suas vestes, pensei que pudessem até serem caixeiros viajantes. Mas estes parentes, residem aonde?

- Ao norte do estado, meu senhor.

- Norte do estado? São então descendentes dos italianos? – Joshua sentiu seu rosto queimar de arrependimento, pois percebeu que cometera um grave erro. – Não fique avexado, meu jovem. Também sou descendente de italianos. Nestes tempos de guerra, é raro encontrar pessoas dispostas a revelar suas origens, ainda mais após o incidente. Pobre rapaz!

- Fala do professor? – perguntou Miguel, para surpresa de Joshua.

- Exato jovem. Aquela embarcação que explodiu foi um destino cruel para o rapaz, mas a revolta e o desejo de vingança que assolou a mentes do pessoal daqui, foi ainda pior. Muitos descendentes de italianos e alemães tiveram suas lojas queimadas ou apedrejadas. Perdemos muitos fregueses e por várias vezes pensamos em retornar para o norte, só que não temos mais nada por lá, tudo nosso foi investido nesta pensão. Nossos filhos estão crescidos e possuem suas próprias vidas, então preferimos permanecer por aqui.

- Meu avô sempre dizia que a família é para isso, apoiar um ao outro. – Retrucou Miguel. – Se os seus filhos são sua herança, eles saberão acolhe-los.

- Seu avô era um sábio. Onde ele nasceu?

- Calábria.

- Eu era muito jovem quando chegamos, mas somente me lembro de três famílias calabreses, os De Rosa, Spina e Pirillo, de qual deles vocês são? – Joshua percebeu que Miguel poderia simplesmente causar-lhes mais problemas e interveio:

- Nosso nonno não veio junto com a grande imigração no século XIX. Ele chegou depois e conheceu nossa nonna, que é toscana, da família Gentili.

- Ah sim, também somos de Toscana, tanto eu quanto minha esposa. Nossa família se mudou para a mesma região, éramos vizinhos. – Miguel chega ao pé do ouvido do primo e cochicha:

- Esse papo ta didático demais pra mim. – Percebendo os dois de segredo, o dono da pousada fala:

- Há algum problema?

- Não. – Retruca Joshua, olhando com severidade para Miguel, que concorda com a cabeça. – Sempre é bom saber de nossas origens. Então possivelmente deve ter conhecido nossa nonna.

- Sim, é possível, mas não pretendo prendê-los mais com lembranças de pessoas velhas. Vocês precisam seguir viagem, mas tomem mais cuidado com trotes. Tiveram sorte de não perderem a roupa do corpo. – Sentindo o rosto ruborizar, Joshua com concordou com a cabeça, sem tirar a xícara de café de perto da boca.

Agora leia a Segunda Parte e depois a Terceira Parte.

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